Narrativas

Uma narração não é um recontar de fatos objetivos. Não é uma câmera de vigilância pronta a registrar o mundo da sua perspectiva fixa e apessoal. Narrações são tentativas de se montar quebra-cabeças e partem do pior lugar possível: de dentro do próprio quebra-cabeça.

“Nasci com alma feminina”, explica a mulher trans para o cisuniverso. “Tenho uma morfotopologia neural feminina”, justifica-se outra. “Sou mulher pois não me encaixo em estereótipos de gênero”, outrinda diz.

Todos ao pé de Rashōmon. Uma estrutura que agora já é clichê e todos podem entender dentro da ficção mas que raramente se aplica à sua própria vida. Rashōmon não é uma história de mentiras egoístas tanto quanto é uma história de verdades individuais. De narrativas.

Narrativas são mapas astrais, búzios, bíblias, arquétipos jungianos, são tipos Myers-Briggs de personalidade. São a visão na qual tentamos nos reconhecer, são o modelo que guia nossas decisões e nossa visão de nós mesmos.

É impossível se conhecer sem linguagem. E a linguagem nos traz moldes prontos, estruturas ideológicas de fácil acesso. Não existe diferença entre em um jocoso “sabe como são escorpianas, né?” e “nasci com uma essência feminina”. Ambos existem num estado de superimposição verdade-mentira. São as mentiras necessárias quando não existe verdade.

Todas as narrativas de transgeneridade são válidas pois todas as narrativas de humanidade são válidas. Teorias de gênero e de personalidade são apenas o substituir de mentiras simples para mentiras complexas. Mentiras que fazem sentido (todas fazem), internamente coerentes (espera-se), que explicam mais do que apenas uma pessoa. Mas ainda assim, mentiras. Masturbações acadêmicas teóricas e retóricas buscando supra-mentiras que expliquem todas as pequenas mentiras.

Urgi que pessoas trans destruíssemos nossas narrativas. Pois o cisuniverso é nosso Rashōmon. O cisuniverso é nossa linguagem. Gênero é a mentira que pessoas cis criaram. É a mentira da qual é impossível escapar. Gênero não existe. Gênero é um sistema de dominação e controle. Gênero é uma performance. Gênero é gostar de azul ou de rosa. Gênero é ter uma genital ou outra. E essas supraestruturas narrativas são todas mentiras. Escolher uma como verdade é desafiar quem a escolheu como mentira.

Escolher uma mentira sobre outras é dizer que nasceu com alma feminina e ouvir que almas não existem. A alma feminina nunca existiu. A alma feminina é a mentira-tomada-por-verdade que permite a sobrevivência, que permite aquietar a dúvida, que permite explicar para o cisuniverso que nós somos gente, que somos válidas, que existimos.

Todas as narrativas trans são válidas pois não existem narrativas trans. Nossas narrativas não são nossas. São sobrevivência. São formas de explicar a nós mesmas e ao cismundo que ainda somos gente. Narrativas trans são, por definição, narrativas cis.

E essa é a minha mentira, minha teoria de gênero masturbatória e inútil: não existe verdade.

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