Críticas ao termo e à identidade cis

Como um tipo de continuação ao meu texto anterior sobre identidades, gostaria de analisar algumas críticas comuns ao termo cis e porque não acho que são válidas. Essa não é uma lista completa e inclui apenas as coisas que consegui lembrar na hora.

 

Mulheres não têm privilégios, homens têm

Também conhecido na roupagem do “não há privilégio em ser forçada a um gênero oprimido” (e nesse caso, a resposta à terceira crítica também é relevante).

Sem entrar em nenhuma lista de privilégios cis (podem ser facilmente achadas por aí), essa crítica peca por não entender corretamente o conceito de interseccionalidade.

É verdade que mulheres não tem privilégios e sim homens. Mas isso é apenas em um eixo específico. Mulheres podem ter privilégio branco, privilégio de classe e privilégio cis. Cis-trans é um eixo distinto de privilégio-opressão. Uma mulher branca é oprimida por ser mulher mas faz parte de um grupo opressor por ser branca. Uma mulher cis ainda é oprimida por ser mulher mas faz parte de um grupo opressor por ser cis.

Da mesma forma, mulheres trans são oprimidas por serem mulheres e trans (mas podem ser parte de um grupo opressor também por serem brancas, ou ricas, etc). Homens trans possuem privilégios masculinos mas são oprimidos por serem trans (é muito importante notar também que os privilégios masculinos de um homem trans são bastante diferentes dos de um homem cis, algo que pretendo escrever mais sobre no futuro).

 

Cis é um xingamento

Não, não é. É um termo completamente neutro.

 

Não me identifico como cis pois nunca tive outra escolha

Pessoalmente, acho esse negócio de ter “outra escolha” um argumento duvidável, mas explorar isso requer suposições demais e fugiria ao escopo desse texto.

O maior problema com essa crítica é pegar uma distinção política e transformar isso em algo dependente dos sentimentos internos da pessoa. O sentimento é uma parte importante da análise e não deve ser ignorado, mas a terminologia é primariamente política. Uma forma de sublinhar privilégios e desnaturalizar o gênero ou a “identidade” das pessoas que os possuem.

 

Me parece bastante duvidável que as pessoas aceitem serem identificadas como heterossexuais ou como brancas mas não aceitem serem identificadas como cis, que possui basicamente a mesma função (e como elas, possui nuances e complexidades e nem sempre é útil ao tentar lidar com casos individuais, sendo uma distinção primariamente política).

Uma mulher que só se relacionasse com homens dizendo que não concorda com ser chamada de hetero por não ter tido escolha não seria tão facilmente aceito quanto a mesma coisa é quando se trata do termo cis.

A humanidade é grande demais e variada demais para ser possível que termos descrevam a infinita complexidade da experiência humana. Mas esses termos, enquanto categorias políticas, são úteis. E como estratégia política é importante não ignorar as inadequações desses termos ao serem aplicados a indivíduos, e como privilégios e opressões não são simples e fáceis de entender: são situacionais, contextuais, e dependem de diversas variáveis. E, geralmente, é justamente nas pessoas que não se encaixam perfeitamente nessas categorias simplificadas que essas nuances importantíssimas podem ser observadas.

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